Quem tem mais de 30 anos deve se lembrar da Feira de Utilidades Domésticas, a UD. Era realizada anualmente no Anhembi, em São Paulo, um passeio obrigatório para famílias nos anos 80 e 90. Mas perdeu atratividade e não sobreviveu à virada no milênio. Infelizmente, vejo os salões de carros cada vez mais no caminho da velha UD. Quem se lembra de algum Salão recente que marcou novos rumos para a indústria automotiva?
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Que deu o que falar, que causou furor midiático como acontece anualmente na CES, em Las Vegas, maior vitrine global de novas tecnologias? Eu, como testemunha de Salões no Brasil e no exterior desde os anos 80, tenho a sensação de que eles estão cada vez mais burocráticos e repetitivos, com pouquíssima inspiração. Em regra, os estandes limitam-se a ser show-room de cada marca, com uma ou outra novidade, às vezes nem isso. O de São Paulo, mesmo sendo bienal, não traz quase nada que o fã de carros não possa ver nas avenidas Europa/Colômbia. Aliás, esse corredor exibe marcas de superesportivos que nem mais aparecem no salão brasileiro.
Se a indústria precisa se reinventar, os salões precisam ser a vitrine dessa reinvenção. Meus colegas da indústria automobilística ou do setor de feiras podem argumentar que os salões de carros ainda atraem muito público e garantem bons negócios. Mas não é essa a questão. Estou falando aqui de repercussão, de inovação, de contexto, e até de diversão. Os salões de carros estão envelhecidos e sem graça. Ainda apoiados no desgastado e machista formato carrão/mulher bonita.
O conceito de feiras de exposição vem da Idade Média, quando o feudalismo entrou em decadência e o comércio começou a ressurgir na Europa. Há referências a feiras até mesmo na Antiguidade, sempre com o objetivo de reunir o que de mais novo existe em alguma área de conhecimento. Certamente o mundo digital-virtual vai tornar cada vez menos necessário o encontro de empresas e clientes num ambiente físico para conhecer as últimas novidades. Mas mesmo nesse formato medieval de feiras e convenções ainda é possível inovar e despertar interesse.
Novos paradigmas
Um exemplo de sucesso é a Comic Con, que surgiu em San Diego (EUA) nos anos 70 e vem crescendo a cada ano. Sua versão brasileira teve início apenas em 2014, em São Paulo (este ano haverá também em Pernambuco) e é um acontecimento cada vez mais midiático, reunindo fãs de quadrinhos, filmes, séries, games e outras variações da cultura pop.
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Qual o segredo do sucesso? O despojamento, a presença de figuras ilustres e, principalmente, a interação com o público. Muitos dos visitantes vão fantasiados e participam de uma série de atividades. Eles fazem parte do espetáculo, não são apenas observadores passivos. Num salão de carros, salvo raras exceções, o máximo de interação possível é tirar fotos ou filmar.
São raros os simuladores e test-drives, invariavelmente com filas desanimadoras. Nem mesmo grandes lançamentos têm dado as caras nos principais salões de carros do mundo. Se o lançamento for realmente importante, a montadora prefere fazê-lo numa ocasião especial e exclusiva, não em meio à confusão de um salão, onde as atenções se dividem entre inúmeros estandes.
Sim, os salões estão em crise e precisam se reinventar. Alguns centenários já morreram e tentam ressurgir, sem sucesso, como o de Turim, na Itália, ou o Britânico, que já ocorreu em Londres e Birmingham. O de Detroit, mais tradicional dos EUA, está decadente há mais de uma década. Perde cada vez mais relevância para o de Nova York, mais rico, ou para o de Los Angeles, mais tecnológico.
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Talvez o sucesso dos salões seja a causa de seu atual fracasso. Eles se proliferaram pelo mundo de tal forma que hoje são muitos, e sempre voltados aos mercados locais. Falta um salão global que seja referência. Um CES automotivo. O único Salão com potencial para ser mais cosmopolita é o de Genebra, na Suíça, mercado pequeno e sem grandes fabricantes. Ele ainda é muito voltado para a Europa, mas poderia ser “O Salão” das grandes tendências do setor, até por seu caráter de neutralidade, onde as marcas de todo o planeta (até as mais exclusivas) têm uma divisão de espaço mais democrática.
E o Salão de São Paulo, tem futuro?
Tem, mas para ganhar relevância deveria abandonar a atual divisão de estandes, que privilegia as quatro montadoras mais tradicionais (GM, Fiat, VW e Ford), que já não dominam uma fatia tão grande do mercado. Além disso, cada marca deveria fazer do seu estande não um show-room, mas uma celebração de sua história, de seus valores, de suas inovações tecnológicas e principalmente de suas ambições para o futuro do automóvel. Com muita interação, visual hi-tech, produtos de grife e criatividade. Só assim, como todos os outros salões, para não ir para o caminho da saudosa UD.